13 de março de 2014

Adélia Prado

Adélia Prado: "Toda arte é uma expressão do divino"
Raffaella Bortolotto - A Gazeta da Casa, Ano VII, Março de 2014
 
 
Adélia Prado

Com licença poética (Bagagem, 1976)
Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.
   
   Minéira de Divinópolis, aos 14 anos Adélia Luzia Prado de Freitas (13 de dezembro de 1935) já escrevia o seus primeiros textos. Formata em Filosofia e professora por 24 anos, ela fez da escrita sua profissão e ajudou na revalorização da mulher no seu papel de intelectual, de mãe, de esposa e dona-de-casa.
   
   Poeta, romancista, contista e autora de histórias infantís, dedica-se ao dia-a-dia das pequenas cidades interioranas, desenvolvendo um singular retrato da condição feminina. Bagagem (1976) foi a sua primeira publicação, por indicação de Carlos Drummond de Andrade: "Meu primeiro livro foi feito num entusiasmo de fundação e descoberta nesta felicidade. Emoções para mim inseparáveis da criação, ainda que nascidas, muitas vezes, do sofrimento”.
Segundo
Adélia, o cotidiano é a própria condição da literatura.  Na sua prosa e na sua poesia há temas recorrentes da vida de província: a moça que arruma a cozinha, a sexualidade, o cheiro do mato, a missa, os vizinhos, a gente de lá.


Dia (O coração disparado, 1978)

As galinhas com susto abrem o bico
e param daquele jeito imóvel
– ia dizer imoral –
as barbelas e as cristas envermelhadas,
só as artérias palpitando no pescoço.
Uma mulher espantada com sexo:
mas gostando muito.
    
   Drummond disse dela: "Adélia é lírica, bíblica, existencial, faz poesia como faz bom tempo: esta é a lei, não dos homens, mas de Deus. Adélia é fogo, fogo de Deus em Divinópolis"

Ensinamento (Poesia Reunida, 1991)
Minha mãe achava estudo
a coisa mais fina do mundo.
Não é.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento.
Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,
ela falou comigo:
“Coitado, até essa hora no serviço pesado”.
Arrumou pão e café , deixou tacho no fogo com água quente.
Não me falou em amor.
Essa palavra de luxo.
   
   Após uma longa carreira, em dezembro de 2013 publica Miserere, uma reunião de 38 poemas que podem ser lidos como fragmentos do diálogo da autora com Deus: “Toda arte é uma expressão do divino, que se comunica primeiro. A arte, mesmo quando pergunta, é uma resposta.”, ela afirma. "Acho que há 30 anos experimentava o mesmo de hoje. Antes olhava a vida da planície e, agora, do planalto. Detalhes novos, lanterna mais potente, polida pela idade, a experiência. Mas o pedido de socorro é o mesmo."

Aí, um desses poemas do planalto:

 

Senha (Miserere, 2013)

Eu sou uma mulher sem nenhum mel
eu não tenho um colírio nem um chá
tento a rosa de seda sobre o muro
minha raiz comendo esterco e chão.
Quero a macia flor desabrochada
irado polvo cego é meu carinho.
Eu quero ser chamada rosa e flor
Eu vou gerar um cacto sem espinho.