1 de dezembro de 2011

Cora Coralina

Cora Coralina, a doceira das palavras: "Coração é terra que ninguém vê"
Raffaella Bortolotto - A Gazeta da Casa, Ano IV, Dezembro de 2011


"Muitas vezes basta ser: colo que acolhe, braço que envolve, palavra que conforta, silêncio que respeita, alegria que contagia, lágrima que corre, olhar que acaricia, desejo que sacia, amor que promove." Essa é Cora Coralina.

Considerada a grande poetisa do Estado de Goiás e uma das principais escritoras brasileiras, Ana Lins do Guimarães Peixoto Brêtas (Cidade de Goiás 1889 - Goiânia 1985), apesar de ter cursado apenas até a terceira série do primário, aos 14 anos escreveu seus primeiros contos e poemas. Também chamada de Aninha, virou Cora aos 15 anos, Cora, derivativo de coração, para se diferenciar de tantas Anas da cidade, batizadas todas em homenagem à santa padroeira. Cora Coralina, coração vermelho, gostava de contar.

Tornou-se doceira para sustentar os quatro filhos depois que o marido, o advogado paulista Cantídio Brêtas, morreu, em 1934. Cora considerava seus doces cristalizados de caju, abóbora, figo e laranja, que encantavam os vizinhos e amigos, obras melhores do que os poemas que escrevia em folhas de caderno: "Se a gente cresce com os golpes duros da vida, também podemos crescer com os toques suaves na alma", afirmava.

Aprendeu a datilografar aos 70 anos, e publicou o seu primeiro livro de poesia, Poema dos Becos e Estórias Mais, em junho de 1965, dois meses antes de cumprir os 76 anos. Seguiram Meu Livro de Cordel publicada em 1976, e Vintém de Cobre (1983). Em 1984 recebeu o Grande Prêmio da Crítica/Literatura, concedido pela Associação Paulista de Críticos de Arte, e o Troféu Juca Pato, concedido pela União Brasileira de Escritores. Tragédia na Roça foi seu primeiro conto publicado.

Assim o poeta Carlos Drummond de Andrade manifestava a sua admiração numa carta dirigida a Cora em 1983: "Minha querida amiga Cora Coralina: Seu Vintém de Cobre é, para mim, moeda de ouro, e de um ouro que não sofre as oscilações do mercado. É poesia das mais diretas e comunicativas que já tenho lido e amado. Que riqueza de experiência humana, que sensibilidade especial e que lirismo identificado com as fontes da vida! Aninha hoje não nos pertence. É patrimônio de nós todos, que nascemos no Brasil e amamos a poesia [...]."

Com certeza, nessa terra que ninguém vê, a Aninha pertence um pouco a todo o mundo.


Assim eu vejo a vida

A vida tem duas faces:
Positiva e negativa
O passado foi duro
mas deixou o seu legado
Saber viver é a grande sabedoria
Que eu possa dignificar
Minha condição de mulher,
Aceitar suas limitações
E me fazer pedra de segurança
dos valores que vão desmoronando.
Nasci em tempos rudes
Aceitei contradições
lutas e pedras
como lições de vida
e delas me sirvo.
Aprendi a viver.

CORA CORALINA


15 de setembro de 2011

Carlos Drummond de Andrade

Carlos Drummond de Andrade: "A poesia é incomunicável"
Raffaella Bortolotto - A Gazeta da Casa, Ano IV, Junho de 2011

Alguns anos vivi em Itabira/Principalmente nasci em Itabira/ Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.” Assim se retratava Carlos Drummond de Andrade na primeira estrofe do seu poema Confidência do Itabirano. Em Itabira do Mato Dentro, Minas Gerais, é que ele nasceu em 31 de outubro de 1902. Formou-se em farmácia na cidade de Ouro Preto, foi funcionário público durante a maior parte da sua vida, mas fez da literatura a sua profissão. Em 1925 fundou “A Revista”, com Emílio Moura e outros companheiros, para divulgar o modernismo no Brasil.
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Carlos Drummond de Andrade

Poeta, contista, cronista, Drummond foi o primeiro grande poeta a se afirmar após os modernistas, dos quais herdou a liberdade linguística, o verso e o metro livre, as temáticas cotidianas. Segundo o crítico literário Alfredo Bosi, “a obra de Drummond alcança um coeficiente de solidão que o desprende do próprio solo da História, levando o leitor a uma atitude livre de referências, ou de marcas ideológicas, ou prospectivas”. Muitos poemas de Drummond denunciam a opressão que marcou o período da Segunda Guerra Mundial. A consciência do difícil momento histórico produz certa indagação filosófica sobre o sentido da vida, pergunta para a qual o poeta só encontra uma resposta pessimista.

Na poesia de Drummond o passado ressurge muitas vezes e sempre como antítese para uma realidade presente. Se nos primeiros livros a ironia predominava na observação desse passado, mais tarde o que vale são as impressões gravadas na memória. Drummond é considerado o poeta mais influente da literatura brasileira do seu tempo, o mais completo poeta brasileiro moderno, tendo também publicado diversos livros em prosa.

Protagonistas da sua obra são a vida e os acontecimentos do mundo a partir dos problemas pessoais, em versos que ora focalizam o indivíduo, a terra natal, a família e os amigos, ora os embates sociais, o questionamento da existência, e a própria poesia. Aqui embaixo, No meio do caminho, o poema-escândalo publicado pela primeira vez na Revista de Antropofagia, em 1928. Os críticos da época diziam que aquilo não era poesia, eles se sentiam provocados pela repetição do poema e pelo “tinha uma pedra” em lugar de “havia uma pedra”.




No meio do caminho

No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.


Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida das minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.

 

Em Revista de Antropofagia, 1928
Incluido em Alguma poesia (1930)




4 de setembro de 2011

Aluísio Azevedo

O Cortiço de Aluísio Azevedo e a estética naturalista
Raffaella Bortolotto - A Gazeta da Casa, Ano IV, Abril de 2011


O escritor nordestino Aluísio Azevedo (São Luís do Maranhão, 14 de abril de 1875), influenciado pelos narradores naturalistas europeus, entre os quais Émile Zola, inaugurou a estética do naturalismo no Brasil com seu romance “O Mulato” (1881). Em 1884 ele publicou “Casa de Pensão” e em 1890 “O Cortiço”, romance considerado peça-chave para entender o Brasil do século XIX, que relata a vida dos moradores de um cortiço no bairro de Botafogo no Rio de Janeiro. Precursor das favelas, ali viviam os humildes, os excluídos, aqueles que não se misturavam com a burguesia, um conjunto de raças em um mesmo lugar que desembocava na promiscuidade e na completa degradação humana.


A obra é narrada em terceira pessoa, com narrador onisciente, típico do movimento naturalista: ele entra no pensamento dos personagens, tenta comprovar, como un cientista, as influências do meio, da raça e do momento histórico. Há dois espaços: o cortiço, que retrata a mistura de raças e a promiscuidade das classes baixas, e o sobrado aristocrático, que representa a burguesia ascendente do século XIX.

Eram cinco horas da manhã e o cortiço acordava, abrindo não os olhos, mas a sua infinidade de portas e janelas alinhadas [...]” (capítulo III).


O livro narra a saga de João Romão, o dono do cortiço. Ele tem uma amante, a escrava Bertoleza, que o ajuda trabalhando de sol a sol, sem descanso. O seu oponente, Miranda, um comerciante bem estabelecido que possui uma condição social mais elevada, cria uma disputa com ele por uma braça de terra que deseja comprar para ampliar seu quintal. Não haverá consenso e, portanto, um rompimento temporário das relações entre os dois. Certo dia, Miranda recebe o título de barão e passa a ter superioridade garantida sobre João, que, para imitar as conquistas do rival, promove várias mudanças na estalagem e consegue que adquira um ar aristocrático. Assim, o cortiço todo muda e perde o caráter desorganizado e miserável que tinha para se transformar na Vila João Romão.

Aí então, o dono do cortiço pede a mão da filha do Miranda em casamento. Bertoleza, que percebe a vontade de Romão para se livrar dela, exige curtir os bens acumulados ao seu lado. Daí que ele, que vê como seus planos de ascensão social são atrapalhados, denuncia-a a seus donos como escrava fugida. Assim, a moça, em um gesto de desespero...

A crítica considera O Cortiço” não somente um romance naturalista, mas também uma alegoria do Brasil pelo fato de ele mostrar essa situação de capitalismo incipiente onde o explorador vivia muito perto do explorado: João Romão junto aos pobres moradores do cortiço, o burguês Miranda em seu palacete com ares aritocráticos.

A atualidade de Aluísio Azevedo está no fato de ele apresentar questões como a grande desigualdade social. Na opinião do crítico Alfredo Bosi, nele “a natureza humana afigura-se-lhe uma certa selvageria onde os fortes comem os fracos”.

O romance começa assim:

"João Romão foi, dos treze aos vinte e cinco anos, empregado de um vendeiro que enriqueceu entre as quatro paredes de uma suja e obscura taverna nos refolhos do bairro do Botafogo; e tanto economizou do pouco que ganhara nessa dúzia de anos, que, ao retirar-se o patrão para a terra, lhe deixou, em pagamento de ordenados vencidos, nem só a venda com o que estava dentro, como ainda um conto e quinhentos em dinheiro [...]”

Fiquem animados, continuem lendo!

1 de agosto de 2011

Dalton Trevisan


Dalton Trevisan, o criador do miniconto contemporâneo brasileiro
Raffaella Bortolotto - A Gazeta da Casa, Ano IV, Fevereiro de 2011


Dalton Jerson Trevisan (Curitiba, Paraná, 14 de junho de 1925) é considerado por grande parte da crítica brasileira o mestre atual do gênero literário do conto, o maior contista moderno do Brasil.

Em 1945 Trevisan estreou com Sonata ao Luar e no ano seguinte publicou Sete Anos de Pastor, ambos renegados pelo autor, que declara não possuir sequer um exemplar dos livros e que "felizmente já esqueci aquela barbaridade". Em 1959 ele chamou a atenção da crítica e conquistou o grande público com Novelas Nada Exemplares, que ganhou o prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro. No começo dos anos setenta, Trevisan foi incluido na antologia O Conto Brasileiro Contemporâneo, dirigida por Alfredo Bosi, junto com Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Rubem Fonseca, entre outros. Seu único romançe publicado é A Polaquinha (1985).

Personagem enigmático, avesso a fotografias, recusa a fama, criando una atmosfera de suspense em torno dele. Aliás, o escritor nem gosta das entrevistas e exposições em órgãos de comunicação sociais. Por causa disso, ele recebeu a alcunha de "Vampiro de Curitiba", nome de um dos seus livros.

Se já nos primeiros livros Dalton tinha chamado a atenção pela estética minimalista, em 1994 com Ah, é? o escritor inaugurou o miniconto contemporâneo brasileiro. No ano, seguinte foi publicado Dinorá, considerado um verdadeiro ponto de partida para compreender a obra do vampiro "iconoclasta ou alienado, que abomina o social e o político", como o próprio autor se define. No livro, inspirado nos habitantes da cidade, se alternam contos de até dez páginas com contos de menos de uma, que mostram o domínio técnico do autor curitibano na criação dos seus personagens por meio de uma linguagem concisa e popular.

Em 2007 foi lançada uma edição revista da obra que possivelmente melhor sintetize Dalton Trevisan (Dinorá, Editora Record Ltda., Rio de Janeiro 2007) e da qual escolhi um miniconto para nossos leitores se deleitarem. Curtam a leitura.

O MENINO

No jardim da saudade o homem de mão dada com o menino. Ao longo da grama verdinha, em silêncio por entre as lousas brancas. Diante do túmulo querido baixam a cabeça e sussurram uma prece.

- De que você mais gosta, meu filho, quando vem aqui?

O murmúrio sereno da pequena cascada nos degrau de pedra. As árvores anãs. O canteiro de imaculados seixos redondos. O jogo de sombras na trilha sinuosa do bosque.

Ao longe, na rua, os carrinhos de pipoca, sorvete, cachorro-quente.

E o menino, banguelo e feliz:

- De comer.

Dalton Trevisan

26 de julho de 2011

Raduan Nassar

A Lavoura fértil de Raduan Nassar
 Raffaella Bortolotto - A Gazeta da Casa, Ano III, Dezembro de 2010

 
"Conversar é muito importante, meu filho, toda palavra, sim , é uma semente." É a messagem que nos transmite  Lavoura Arcaica, o romance estreia de Raduan Nassar. O

livro é uma dessas descobertas que a gente pode fazer só de mão dada com alguém que sabe para onde nos levar. “Uma revelação dessas que marcam a história da nossa prosa narrativa”, segundo o crítico literário brasileiro Alfredo Bosi.
 
 
Narrado em primeira pessoa, é o conto de André, um rapaz que se rebela contra as tradições agrárias e patriarcais, e foge para a cidade à procura da sua identidade (“Eu posso ser o profeta da minha própria história.”). No entanto, ele acaba numa pensão medíocre de um vilarejo, onde é encontrado pelo irmão mais velho, Pedro, que tinha sido mandado pela mãe a buscá-lo a fim de reconstruir a unidade familiar. Ali, André começa a lhe contar os motivos da sua fuga e do conflito contra os valores paternos (“Nessa casa, tudo é impregnado da palavra do pai.”), fiados na doutrina cristã: o tempo, a paciência, a família, a terra. De volta para a fazenda, André é recebido pelo pai numa longa conversa que, ao invés de resolver o conflito, evidencia essa distância insuperável entre gerações. Daí que a história pode ser lida também como uma versão invertida da parábola do filho pródigo.

O modo elíptico de o narrador contar, a falta de pontos continuativos não há parágrafos, cada capítulo é narrado num só período , o conteúdo em si iam me deixando quase sem fôlego e ao mesmo tempo com vontade de continuar lendo. Adorei o lirismo, a elegância da prosa, a minúcia na escolha das palavras, a competência linguística do autor. É a história na história, onde o não dito é quase mais importante do que o narrado. Pessoalmente, concordo com a crítica, trata-se de uma verdadeira obra-prima.

O livro virou filme em 2001, com o mesmo título, por obra de Luiz Fernando Carvalho. O diretor transpôs para a tela quase o texto inteiro: o resultado são cenas longas, conversas que na verdade são extensos monólogos, citações textuais. No filme, a palavra torna-se imagem, a narração falada, ação visual.

Alguns críticos cinematográficos falam que o filme é uma poesia de imagens e palavras e a ótima técnica fotográfica de Walter Carvalho transforma cada cena numa pintura. E é mesmo.



Raduan Nassar

 
Filho de imigrantes sírio-libaneses, Raduan Nassar nasceu em Pindorama, cidade do interior do estado de São Paulo, em 27 de novembro de 1935. Ele estreou na literatura com Lavoura Arcaica em 1975; após três anos publicou a novela Um Copo de Cólera, que fora escrita em 1970, e em 1997 um livro de contos dos anos 60 e 70, Menina a Caminho. Em 1984, infelizmente, ele deixou o universo das letras órfão da sua produção para voltar ao mundo agrário e se dedicar à criação de aves.

21 de julho de 2011

Viajar lendo

Da leitura e a viagem: um périplo pelas letras portuguesas
Raffaella Bortolotto - A Gazeta da Casa, Ano III, Junho de 2010


O que é a leitura se não uma viagem?   Ler é isso, viajar, é a gente se encontrar conosco no olhar do outro, para além do limite espaço-temporal. Folhear as páginas de um livro é uma aventura contínua que abre as portas da nossa mente, ajuda-nos a acharmos as respostas às nossas perguntas, leva-nos para outros países; é descoberta, é beleza, é fascínio.


E eu quis fazê-lo nas asas da língua portuguesa à procura das suas maravilhas, num diálogo sem voz direto com o meu narrador, sem intermediários.
Tenho viajado para dentro e no espaço exterior, ultrapassando as fronteiras geográficas por meio de um idioma que é pátria comum de autores de grande talento, às vezes desconhecidos pela maioria do público. Buscava tesouros e os encontrei.


Assim, no Rio de Janeiro de Machado de Assis assisti à missa do galo, brindei pelo ano novo com Rubem Fonseca, embaquei no navio de Cecília Meireles e marchei ao passo do coração andarilho de Nélida Piñón. Em Minas Gerais, Adélia Prado me ensinou qual é a coisa mais fina do mundo, marquei um encontro com Fernando Sabino, compartilhei minha paixão pela poesia, o pôr-do-sol e o canto dos ventos com Carlos Drummond de Andrade, e imaginei o céu do “grande sertão de João Guimarães Rosa. No Brasil, ainda, percorri o território gaúcho de Erico Veríssimo no cavalo do seu capitão Rodrigo e explorei a paisagem da infância de Milton Hatoum, descobrindo as cores da Amazônia, sua flora, seus sabores, seus cheiros. Além disso, sentei-me perto do coração selvagem de Clarice Lispector e fiquei fascinada pela sua prosa poética, pela sua genialidade, por aquela sua rara profundidade de olhar que sugere um universo de sensações. Também sonhei em casa com o baiano Jorge Amado, esse excelente contador de histórias que nos mostra um Brasil cheio de África. E mesmo desse continente imenso ouvi vozes que me levaram até a Angola de Ana Paula Ribeiro Tavares e Ondjaki, e o Moçambique de Mia Couto e Luis Bernardo Honwana. Aí conheci máscaras, tranças, sons e tambores, com um colar de missangas em volta do pescoço.

Sempre deste outro lado do Atlântico, cruzei metade da Europa montada no elefante Salomão de José Saramago, voei na chuva com a abelha de Carlos de Oliveira e me perdi à vontade entre as ruas da mágica Lisboa de Fernando Pessoa, aquele grande “fingidor”.

E isso tudo é só o início da aventura, pois ainda me falta percorrer muitas páginas em português, um caminho cuja finalidade com certeza não é um lugar de destino, mas a viagem em si.


18 de julho de 2011

Clarice Lispector

Clarice Lispector: "A palavra é o mio domínio sobre o mundo"
Raffaella Bortolotto - A Gazeta da Casa, Ano III, Março de 2010


Clarice Lispector
Minha viagem pelas letras portuguesas torna-se fascínio nas páginas da obra de Clarice Lispector (1920-1977), a prodigiosa escritora brasileira que, segundo suas próprias palavras, fez da língua de Camões a sua vida interior, o seu pensamento mais íntimo.

Nem lembro como cheguei a ela, acho que foi ela que veio a mim:


Nasci para amar os outros, nasci para escrever, e nasci para criar meus filhos. [...] Amar os outros é a única salvação individual que conheço: ninguém estará perdido se der amor e às vezes receber amor em troca [...].

É o pensamento de fundo que rende universal um trabalho literário de não fácil leitura, mas extraordinariamente empolgante.


Que maravilha encontrar-se com ela entre suas linhas! Quanta paixão, sentimento, vida ela transmite na elegância do seu falar sem dizer, no seu sugerir, no seu sussurrar. O tempo, o silêncio, a linguagem: ler Clarice Lispector é se apaixonar por uma escritura rica de uma espécie de magia. Parece-me que ela está sentada ao meu lado enquanto leio, que folheia comigo as páginas dos seus livros, em silêncio, discretamente. Acho a dela uma prosa altamente poética que leva o leitor a sentir o que ela escreve, usando a intimidade de quem está contando uma história mais do que a escrevendo. O que é subjetivo é o reflexo de uma realidade profunda que leva para a essência da existência.

Ela dizia criar de modo intuitivo, quando escrevia tudo partia de uma sensação inicial sem saber se teria estrutura para transformar-se numa obra: “O processo de escrever é feito de erros - a maioria essenciais - de coragem e preguiça, desespero e esperança, de vegetativa atenção, de sentimento constante [...].


Coerente, presente, aguda, sensível, irônica, sutil, universal: genial. Com sua rara profundidade de olhar, Clarice plasma nos seus textos impressões da realidade, visões de momentos da vida quotidiana aparentemente simples, mas que escondem algo detrás do circunstancial. Através das suas personagens, ela tenta explicar a condição da mulher e de qualquer outro ser humano numa sociedade onde prevalece o afã pela posse e a incapacidade para dialogarmos.



Esta excepcional narradora faz da literatura um veículo de imagens, sentimentos, ideias, um universo de sensações em que ela procura se encontrar consigo, uma pesquisa acerca da complexidade de ser, onde ela topa com a dificuldade de se comunicar com os outros:
Minha alma tem o peso de uma saudade. Tem o peso de um olhar. Pesa como pesa uma ausência. E a lágrima que não se chorou. Tem o imaterial peso da solidão no meio de outros [...].

 É um sentir que lembra a angústia dos existencialistas, ainda que ela afirmasse que a sua náusea era diferente da de Sartre, era a náusea do corpo todo, da alma total”. O nosso destino é a aceptação da condição de seres humanos e a renúncia à busca de um sentido.

Clarice Lispector, um mistério para si própria, um “coração batendo no mundo” que escrevia para se manter viva, para sentir a sua alma “falando e cantando, às vezes chorando”. E pensava escrever até que ela tivesse perguntas e não houvesse respostas. Porque a palavra era o seu domínio sobre o mundo.





16 de julho de 2011

Mia Couto


Mia Couto: Jorge Amado, o escritor brasileiro que fez os africanos sonharem em casa
Raffaella Bortolotto - A Gazeta da Casa, Ano III, Fevereiro de 2010


Folheando a publicação mais recente do moçambicano Mia Couto (Beira, 1955), E se Obama fosse africano? e outras interinvenções, um conjunto de palestras em encontros públicos dos últimos anos em que ele reflete sobre temas que vão da política à literatura, topamos com

“Sonhar em casa”, resultado da intervenção que teve lugar em São Paulo em 2008, em que o escritor fala da importância da influência de Jorge Amado na gênese da literatura dos países africanos de língua portuguesa. Nestas páginas, ele afirma que se bem é certo que Gregório Mattos e Tomas Gonzaga ajudaram a criar os primeiros núcleos literários em Angola e Moçambique, quem deixou marcas profundas e duradouras na literatura desses países foi o escritor baiano.


A partir dos anos 50 até a década dos 70, os livros de Jorge Amado causaram um grande impacto no imaginário coletivo dos africanos. Por que tanto fascínio por este autor brasileiro?, Mia Couto se pergunta.


Segundo ele, à parte a qualidade do texto, Jorge Amado soube tratar a literatura na dose correta, pois “pior que não escrever um livro é escrevê-lo demasiadamente”, e soube permanecer um excelente contador de histórias e um extraordinário criador de personagens. Além do mais, ele nunca deixou de ser um poeta do romance: na sua conversa íntima, as personagens saem da página e entram na vida quotidiana do leitor. É uma conversa “à sombra de uma varanda que começa em Salvador da Bahia e se estende para além do Atlântico”, diz Couto. E acrescenta que suas personagens são gente pobre, gente com os nomes deles, gente com suas raças, vizinhos “não de um lugar, mas da nossa própria vida”. Os espaços são os terreiros onde os africanos falam com os deuses; o cheiro é o da sua comida; a sensualidade, a das suas mulheres.


Nos seus livros, Jorge Amado escrevia um país, o Brasil, “tão cheio de África, tão cheio da nossa língua e da nossa religiosidade”, um país que voltava para África, um “espaço mágico onde nós renascíamos criadores de histórias e produtores de felicidade”.


No entanto, à parte as razões literárias, existem outros motivos que explicam por que Jorge Amado é tão querido nos países africanos lusófonos. Num regime de ditadura colonial, os poetas nacionalistas moçambicanos e angolanos ergueram Amado como uma bandeira. Os africanos precisavam de um português “sem Portugal”, de uma língua que os ajudasse a encontrar sua própria identidade. E Jorge Amado e os brasileiros lhes devolviam a fala num outro português, “mais açucarado, mais dançável, mais a jeito de ser nosso”.


Poderem sonhar em casa, Jorge Amado deu isso aos africanos. Na reflexão de Mia Couto, foi isso que fez Amado ser deles, africano, e lhes fez a eles serem brasileiros.


O escritor baiano Jorge Amado

12 de julho de 2011

Nélida Piñón

Nélida Piñón: a importância de olhar para o outro e sentir a sua emoção
Raffaella Bortolotto - A Gazeta da Casa, Ano II, Novembro de 2009



Mais uma vez, Casa de América recebe a famosa escritora, membro da Academia Brasileira das Letras, Nélida Piñón (Rio de Janeiro 1937), prêmio Príncipe de Asturias das Letras 2005 e autora do romance A República dos sonhos entre outros.

No acabar do dia 8 de outubro, na sala Bolívar, ela encontra seus leitores, aos quais agradece a presença: “Na literatura somos todos irmãos, estamos amalgamados pelo amor pela palavra”, diz-nos num tom confidencial.

Nélida está em Madri para apresentar seu último livro, Coração Andarilho, uma obra memorística que oferece uma perspectiva reflexiva sobre sua própria existência. Na obra, não são os fatos que falam, mas as sensações, os sentimentos.

Trata-se de uma “saga familiar na memória”, onde ela narra os momentos da sua infância vividos na Galícia, terra de procedência da sua família, e descobre a importância da presença, naquela fase da sua vida, do seu avô Daniel, o qual queria que ela fosse uma menina singular, com uma educação excelente.

Então abriu-lhe uma conta sem limites numa importante livraria do Rio, onde ela podia escolher suas leituras livremente, sem censura.

Assim foi como ela foi abrindo portas a novas percepções, e não somente na literatura, mas também na música, na ópera ou no ballet, pois apaixonava-se por tudo. Daí a relevância que tem para ela o fato de ter sido educada numa família liberal.

É um verdadeiro prazer nos deleitar na escuta dos seus relatos, ouvi-la compartilhar conosco seus momentos privados, com essa gravidade que ela tem, garantida por uma sabedoria ganha no transcurso de anos de semeadura e colheita de pensamentos e palavras.
Aprofundando-se na conversa, revela-nos que o escritor pode dar vida ao que aparentemente está morto, um trabalho fascinante que o leva à exploração da alma humana.

Segundo Nélida, existe um mistério na criação literária, a grandeza do texto está na sua imponderabilidade: “ O texto me excede, ele é capaz de falar mais, para além das minhas intenções”.
Imersa no “campo fértil da memória”, a escritora nos confessa que a sua mãe ensinou-lhe o caminho para a velhice. Afirma estar curtindo muito sua serenidade atual: pensar, sentir, se emocionar. Acrescenta que ela gostaria de escrever sempre e que o único medo que ela tem é perder a capacidade de se comover, pois olhar para o outro e sentir sua emoção é o que dá sentido à sua vida.

Concluindo, fala a Nélida que sentimos ainda mais próxima, a Nélida que nos quer transmitir sua felicidade pela entrada na sua vida de uma forma de amor para ela tanto inédita quanto surpreendente, trazida da mão do seu Gravetinho: “ Jamais imaginei que poderia me apaixonar tanto por um cachorrinho. Sei que ele fica lá me esperando e estou desejando voltar para casa. Como se eu fosse Ulisses, volto a Ítaca.

9 de julho de 2011

Da Língua Portuguesa

Ler em português: descobrindo uma paixão
Raffaella Bortolotto - A Gazeta da Casa, Ano II, Junho de 2009



Contam os linguistas que a língua portuguesa tem suas origens num pequeno território do canto noroeste da Península Ibérica, a Gallaecia Magna. Derivada do latim vulgar, desenvolveu-se na Lusitânia nos primeiros séculos da era cristã, epoca em que o Império Romano conquistou a região e instituiu o latim como língua oficial. Sucessivamente, com os descobrimentos marítimos dos séculos XV e XVI, o idioma se espalhou em quatro continentes, até ser falado, hoje em dia, por uns 220 milhões de lusófonos, entre Portugal, Brasil, Angola, Moçambique, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Timor Oriental e Guiné- Bissau.

Uma língua, o português, que ultrapassa, portanto, as fronteiras geográficas, para ser pátria comum de grandes sensibilidades poéticas, em cujas criações literárias ela se plasma.

“A minha pátria é a língua portuguesa”, afirmou o poeta Fernando Pessoa (Lisboa, 1888 – Lisboa, 1935). Uma língua que é também pátria de outras figuras excelentes no âmbito da literatura, entre as quais o moçambicano Mia Couto (Beira, 1955) e os brasileiros Carlos Drummond de Andrade (Itabira, 1902 – Rio de Janeiro, 1987) e Cecília Meireles (Rio de Janeiro 1901 – Rio de Janeiro 1964), considerada a primeira grande escritora brasileira e principal voz da poesia moderna do Brasil.

Como não nos apaixonarmos por uma língua que deu de presente ao universo literário as reflexões do Drummond sobre o papel do homem no mundo? Como não tropeçarmos com ele na “pedra” do seu “caminho”? Como não nos perdermos na “viagem” da imensa Cecília Meireles, na sua reflexão filosófico-existencial, no seu eu-lírico, no seu cantar poético. (Eu canto porque o instante exixte/e a minha vida está completa./Não sou alegre nem sou triste:/sou poeta. <…>)Se  "A poesia é incomunicável”, como recita uma estrofe do Drummond, quanto se perde na tradução? Quanto deixaríamos no caminho, traduzindo o lirismo delicioso de Mia Couto, segundo o qual “As letras igualam as estrelas: mesmo poucas são infinitas”? E quantos matizes nós perderíamos do “desassossego” de Fernando Pessoa, do seu canto existencialista profundo, do seu “fingir"(O poeta é um fingidor./Finge tão completamente/que chega a fingir que é dor/a dor que deveras ente.<…>)?

Eu acho que comecei a me apaixonar pelas letras portuguesas numa das primeiras leituras que fiz em original, mal li aquele "A velha dobrou as pernas como se dobrasse os séculos”, que dá início ao conto A carta, de Mia Couto. E linha trás outra, quanto mais eu ia avançando, mais ficava presa naquela maravilhosa intensidade.

A intensidade de um dos tantos tesouros literários que o português esconde. A beleza de uma língua apaixonante e o melhor caminho para descobri-los.


6 de julho de 2011

Luis Fernando Veríssimo

Luis Fernando Veríssimo: crônica de um encontro
Raffaella Bortolotto - A Gazeta da Casa, Ano II, Abril 2009


No passado 18 de fevereiro, um acolhedor Madri ensolarado recebeu Luis Fernando Veríssimo, um dos escritores mais lidos no Brasil, de visita à Espanha para promover a edição do seu romance Borges y los Orangutanes Eternos.
 A Embaixada do Brasil, em colaboração com a Fundación Cultural Hispano-Brasileña, abriu as portas para nos convidar ao sarau literário com o filho do também famoso escritor Érico Veríssimo.

Nacido em 26 de setembro de 1936 em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, figura polifacética, defensor dos direitos humanos e da liberdade, Veríssimo recebeu numerosos prêmios nesse âmbito e pela sua extensa obra. Na atualidade, publica suas crônicas duas vezes por semana no jornal O Globo.

Cronista, romancista, poeta, humorista, autor de textos para a televisão e o teatro, saxofonista, amante do futebol, da música, do desenho, ele é sobretudo um “apaixonado pela vida”, segundo suas próprias palavras.

Poucos minutos antes de começar o ato, a elegante sala da embaixada dedicada ao evento fica cheia, o ambiente é cálido, há um vibrante ar de espera. Dispomo-nos ordenadamente a conversar com Luis Fernando, ele no centro, nós ao seu redor. É a estampa própria de um descontraído encontro informal.
O escritor se acomoda no confortável sofá de estilo neoclássico e com ele senta-se todo o peso enriquecedor de uma existência vivida intensamente.

Homem de temperamento reservado, ele se revela modesto, agudo, sutil, irônico e autoirônico, encantador desde o princípio.
A agudeza e o senso do humor de Veríssimo entram logo em cena: “Por favor, botem outra cadeira aqui para meu ego!”, ele diz após a breve mas substanciosa apresentação do professor Antônio Maura diretor da cátedra de Estudos Brasileiros da Universidad Complutense de Madrid.

Aliás, a magia da sua crônica está em tratar o aspecto crítico com senso de humor: “O humor é um instrumento com que se podem fazer comentários de modo acessível”, explica-nos. “Quando comecei a escrever, em 1967, havia assuntos proibidos, não dá para comparar com agora”.
E continua: “Comecei a trabalhar na cozinha do jornal, fazia o horóscopo. Como a gente só se importa com o próprio signo, cada dia eu mudava o mesmo prognóstico para outro signo, e ninguém se dava conta…


Cruzamos com o olhar agudo do escritor
Borges y los Orangutanes Eternos é uma história policial na qual o escritor argentino Jorge Luis Borges não só faz parte da história como também tem de resolver um crime, o qual, por sua vez, é baseado numa história de Edgard Allan Poe, o inventor do romance policial.
Ao lhe perguntarem se não considera egocêntrico ser o personagem dos seus próprios romances, Veríssimo responde que “é verdade que o narrador de alguma maneira representa o autor, mas também é verdade que todo mundo escreve um pouco sobre si mesmo e seu próprio pensamento”.
 
E sobre si mesmo Luis Fernando tem tido muito tempo para escrever. Percebemo-lo na distância curta, quando nos sentamos ao lado dele para a dedicatória no livro. Agora, mais de perto, cruzamos o outro olhar de Veríssimo, o olhar direto e profundo do poeta, o olhar introspectivo que nos lembra aquela sua aguda reflexão que alguma vez, em algum lugar, lemos e reconhecemos: “Quando a gente acha que tem todas as respostas, vem a vida e muda todas a perguntas…”



2 de julho de 2011

Milton Hatoum

MILTON HATOUM: "A literatura é a arte da paciência."
O escritor amazonense entre memória, floresta e Eldorado
Raffaella Bortolotto - A Gazeta da Casa, Ano II, Fevereiro de 2009


Conhecemo-lo, Milton Hatoum, o escritor amazonense reconhecido pela crítica do seu país e internacional como um dos mais talentosos autores brasileiros da atualidade.

Nacido em Manaus em 1952 de pais sírio-libaneses e brasileiros -criado, por tanto, entre duas religioes e duas línguas-, arquiteto e mestre em Literatura pela Universidade Paris III (Sorbonne Nouvelle), viajou para Europa e Estados Unidos, e ensinou Literatura na Universidade do Amazonas e na Universidade de Califórnia, em Berkeley. Escreveu quatro cativantes livros de ficção, três dos quais  -Relato de um Certo Oriente (1989), Dois Irmãos (2000), Cinzas do Norte (2005)- foram vencedores do prestigiado Prêmio Jibuti, e o último, Ófãos do Eldorado, sucesso editorial de 2008.

Temos o prazer e privilégio de encontrá-lo aqui, na Espanha, numa tarde morna do princípio do outono madrileno, recebido pela Fundación Cultural Hispano-Brasileña como convidado do Proyecto Escritor Visitante 2008. “Cada livro te ensina a escrevê-lo”, nos revela. Ser humano de extraorinária consistência, mostra-se logo próximo, disponível à conversa, resultando-nos quase familiar. E é que mais que conhecê-lo, parece-nos reconhecê-lo: adivinhamo-lo quer nos traços somáticos de alguns dos personagens habilmente criados pela sua pluma, quer, sobretudo, na espessura humana destes. De fato, se bem é certo que o escritor sempre fica (mais ou menos oculto) entre as linhas das suas criações, poucas vezes essa presença nos pareceu tão manifesta como no caso de Hatoum. Percebemo-lo nas características étnicas da família de emigrantes libaneses protagonista de Dois Irmãos, mas também na nobreza da alma de Mundo, personagem central de Cinzas do Norte, e na verdade interior de Arminto Cordovil, o narrador do seu último trabalho literário, Órfãos do Eldorado.


Reunidos na Sala Borges da Casa de América, numa cálida atmosfera informal, ele nos fala acerca dos seus romances e do modo de sentir a vida, refletido na sua forma de escrever. O seu projeto literário, nos conta, é ligar a história pessoal à familiar, porque “num certo momento da nossa vida, a nossa história -com todas as limitações e delimitações que essa história suscite- é também a história da nossa família e de nosso país“.

E o âmbito onde as histórias se originam é a memória, pois “a literatura é movida pela memória”. Assim é para Arminto Cordovil, no início da narração: “Conto o que a memória alcança, com paciência”. Segundo Hatoum, a memória não é muito diferente da imaginação: ela é uma construção, faz parte do processo da imaginação. Por isso é importante para o romancista escrever sobre o passado, porque “o tempo recente vai falar de fatos e os fatos não interessam para a literatura”. Assim, na sua obra são as vivências do narrador que estabelecem a narração, o tempo narrativo é um tempo fragmentário, um vaivém no espaço e no tempo. A narrativa se apresenta como fluxo de conciência (técnica utilizada já por Flaubert, Proust, Joyce, ou Virginia Woolf) que intercepta presente e passado, quebrando os limites espaço-temporais: não resulta tão claro distinguir entre as lembranças dos personagens e a situação presentemente narrada.

Memória como “o outro nome da imaginação”, portanto. A rica imaginação do escritor manauara, alimentada por um dos elementos que mais marcaram a sua vida: a paisagem da infância. Então entra na cena a Amazônia, personagem não menos intenso e vivo que os personagens humanos de Hatoum, com sua particularidades geográficas, antropológicas e religiosas. Na grande representação estão as cores da floresta, sua fauna, sua flora, os sabores e os pratos típicos, que ficam às vezes adaptados às tradições da gastronomia árabe. E os cheiros: quem conheçeu os cheiros dessas latitudes, não pode deixar de revivê-los nas páginas da obra de Hatoum.

Pano de fundo em toda a criação literária do escritor, a Amazônia é mais que nunca protagonista em Órfãos do Eldorado, uma história de fundo mítico -no formato literário de novela- narrada entre o sonho e a vigília, onde se fundem o mito do Eldorado com a Cidade Encantada, no cenário de Manaus e da região amazônica. Desenvolvida no início do século passado, aqui a narrativa funde duas instâncias: a real, onde Arminto luta contra a figura do pai (tema presente, o do conflito familiar, também em Dois Irmãos e Cinzas do Norte) e vive a relação ambígua com Florita, a mulher que o criou; e a outra, quase sobrenatural, onde ele se perde na obsessão por uma órfã misteriosa. Na novela apreciamos, mais uma vez, essa fluidez natural própria do escritor amazonense, com a sua peculiar capacidade de levar os elementos de um drama humano individual a sentimento universal. Uma visão existencial substancialmente pessimista, a de Hatoum, pois na sua obra não há “solução” e nenhum personagem se salva no final: só os narradores sobrevivem, porque “se não sobrevivessem, não haveria narrativa”.

Mas, apesar dos conflitos de fundo que caracterizam as relações humanas, das incompreensões e dos desencontros, para além do cinza existencial que tinge as vidas dos personagens de Milton Hatoum, queremos descobrir entre as linhas das suas páginas literárias mais delicadas a beleza do momento autêntico: “Ela se comoveu, Lavo. Encontrei uma pessoa que se emociona", diz Mundo se referindo Ramira.

Assim como nós nos emocionamos, no final deste bonito encontro enriquecedor, ao recebermos o afetuoso abraço com que, chegado já o anoitecer, nosso escritor se despede de Madri.