20 de junho de 2016

África no Brasil

A contribuição africana ao português do Brasil
Raffaella Bortolotto - A Gazeta da Casa, Ano IX, Junho de 2016

 
O português falado no Brasil tem muitas palavras de origem africana que chegaram junto com a vinda dos escravos desse continente a partir do século XVI. Eles foram extraídos de duas regiões subsaarianas : a região bantu, situada ao longo da extensão sul da linha do equador, e a região oeste-africana ou sudanesa, que abrange territórios que vão do Senegal à Nigéria. O povo Bantu foi um dos primeiros a fazer a viagem no tráfico transatlântico. Por isso a variedade de termos de origem africana que há no diccionário brasileiro provém sobretudo do grupo bantu, que compreende a família linguística Níger-Congo com as línguas  quicongo (o quicongo é falado na República Popular do Congo), quimbundo ( o quimbundo é a língua da região central de Angola),  e umbundo ( umbundo é falado no sul de Angola e em Zâmbia).
Palavras como abadá, caçamba, cachaça, cachimbo, caçula, canga, carimbo, caxumba, cochilar, corcunda, fubá, macaco, maconha, macumba, marimbondo, moleque, tanga, xingar, banguela, babaca, batuque, berimbau, bunda, samba, cafundó, quilombo, zumbi... de lá é que provêm.
 
No entanto, as interferências nem só se dão no léxico, senão também na morfologia e na sintaxe, com a simplificação e redução das flexões. Essa característica pode ser observada principalmente na linguagem popular, nessa parte da população em que as pessoas raramente utilizam as desinências de plural, que tendem a se restringir ao primeiro determinante da frase: “As primas já chegaro”; “Esses menino são endiabrado

Também nas línguas africanas não há o conhecimento da separação por gênero como em português a/o (bonito/bonita), o que pode contribuir  para  explicar a volubilidade de gêneros nos nomes (“minha senhor”) que  se observa na fala popular. Além disso, outro importante fato a ter em consideração é a interferência na pronúncia: a inclinação do falante brasileiro em omitir a última consoante  das palavras ou transformá-las em vogais ( “falá”, “dizê”, “dirigî”, “Brasiu”) coincide com a estrutura  silábica  das  em bantu, que nunca terminam em consoante.
Na estrutura silábica dessas línguas africanas também não há o encontro consonantal, como ocorre na linguagem popular brasileira. Há a tendência de desfazer esse encontro e fazer uma nova sílaba ao se colocar uma vogal entre elas: sarava (salvar), fulô (flor), etc.
Ainda, é considerada como de origem africana a semivocalização do "l" palatal ("lh"), que se observa na pronúncia popular em algumas regiões do Brasil: muyé por mulher; fiyo por filho; paya por palha. 

É bem certo que o português falado no Brasil
herdou muitos vocábulos das línguas africanas. Mas também poucos, considerando o total deles, sendo que desses que chegaram até nós, a grande maioria está relacionada ao trivial,  palavras em relação à religião deles, à culinária ou qualquer outro assunto referente ao ordinário.  Portanto, essa mesma cultura não foi tão incisiva  assim nos termos de vocabulário. Na verdade, tendo em vista os aspectos observados, onde a influência africana se dá principalmente é na tendência à simplificação. Aliás, a sua grande contribuição está mesmo na oralidade,  numa fala mais aberta e com mais curvas, o que a faz dissociar consideravelmente do português de Portugal.


 
 

26 de maio de 2015

Machado de Assis

O gênio criador de Machado de Assis
Raffaella Bortolotto - A Gazeta da Casa, Ano VIII, Maio de 2015
 
Joaquim Maria Machado de Assis
 Conhecemo-nos entre as linhas do seu conto Missa do Galo: “Não sabia odiar; pode ser até que não soubesse amar”, assim conclui a descripção de um dos personagens, Conceição. O encontro foi apaixonante. Era Joaquim Maria Machado de Assis (Rio de Janeiro, 21 de junho de 1839 - Rio de Janeiro, 29 de setembro de 1908), o escritor carioca de ascendência africana e portuguesa considerado o maior nome da literatura brasileira e um dos grandes gênios do âmbito na história. Poeta, romancista, cronista, dramaturgo, contista, jornalista e crítico literário, escreveu em todos os gêneros. Além disso, foi um importante relator e comentador dos acontecimentos políticos-sociais da sua época, momento de mudanças  relevantes em que a República substituiu o Império.

Nasceu em uma família pobre Machado. Entre os seis e os catorze anos  perdeu a sua única irmã, a mãe e o pai. Estudou numa escola pública e não frequentou a universidade. Mas tinha um grande talento e uma enorme força de vontade, que fizeram com que superasse toda adversidade. Aliás, a sua superioridade intelectual o levou a assumir vários cargos públicos, no Ministério da Agricultura, do Comércio e das Obras Públicas. No âmbito literário, a sua carreira de escritor começou precocemente, por volta dos 16 anos, publicando poesias e crônicas nos jornais locais enquanto trabalhava como aprendiz numa tipografia.  Na maduridade fundou a Academia Brasileira de Letras e foi o seu primeiro presidente.

[A extensa obra de Machado de Assis é constituida por 9 romances, 9 peças teatrais, 200 contos, 5 coletâneas de poemas e sonetos, e mais de 600 crônicas. Os romances e contos anteriores à década de 1880 revelam influências românticas, como  Ressurreição (1872), A mão e a luva (1874), Helena (1876), Iaiá Garcia (1878), Contos Fluminenses (1870) e Histórias da meia-noite (1873). A publicação do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881) marca a segunda etapa, com uma evidente mudança estilística e temática, e o escritor torna-se o pai do Realismo no Brasil. A partir daí, a ironia, o pessimismo, o espírito crítico e uma profunda reflexão sobre a sociedade brasileira viram as principais características das suas obras. Dessa fase fazem parte Quincas Borba (1891), Dom Casmurro (1899), Esaú e Jacó (1904) e Memorial de Aires (1908).

Machado de Assis é considerado um dos grandes da literatura universal, ao lado de Shakespeare, Dante Alighieri, Flaubert ou Dostoievski. Infelizmente, como no caso de outros importantes autores da literatura brasileira, o fato de ele ter escrito em português, uma língua de poucos leitores, tornou difícil o seu reconhecimento internacional. Foi a partir do final do século XX que as suas obras começaram a ser traduzidas para o inglês, o francês, o espanhol e o alemão, despertando interesse mundial.

 Quando Machado de Assis morreu, na sua casa situada na rua Cosme Velho, foi decretado luto oficial no Rio de Janeiro, e seu enterro, acompanhado por uma multidão.

 

 "Se só me faltassem os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde. Mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo." Do romance Dom Casmurro


13 de março de 2014

Adélia Prado

Adélia Prado: "Toda arte é uma expressão do divino"
Raffaella Bortolotto - A Gazeta da Casa, Ano VII, Março de 2014
 
 
Adélia Prado

Com licença poética (Bagagem, 1976)
Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.
   
   Minéira de Divinópolis, aos 14 anos Adélia Luzia Prado de Freitas (13 de dezembro de 1935) já escrevia o seus primeiros textos. Formata em Filosofia e professora por 24 anos, ela fez da escrita sua profissão e ajudou na revalorização da mulher no seu papel de intelectual, de mãe, de esposa e dona-de-casa.
   
   Poeta, romancista, contista e autora de histórias infantís, dedica-se ao dia-a-dia das pequenas cidades interioranas, desenvolvendo um singular retrato da condição feminina. Bagagem (1976) foi a sua primeira publicação, por indicação de Carlos Drummond de Andrade: "Meu primeiro livro foi feito num entusiasmo de fundação e descoberta nesta felicidade. Emoções para mim inseparáveis da criação, ainda que nascidas, muitas vezes, do sofrimento”.
Segundo
Adélia, o cotidiano é a própria condição da literatura.  Na sua prosa e na sua poesia há temas recorrentes da vida de província: a moça que arruma a cozinha, a sexualidade, o cheiro do mato, a missa, os vizinhos, a gente de lá.


Dia (O coração disparado, 1978)

As galinhas com susto abrem o bico
e param daquele jeito imóvel
– ia dizer imoral –
as barbelas e as cristas envermelhadas,
só as artérias palpitando no pescoço.
Uma mulher espantada com sexo:
mas gostando muito.
    
   Drummond disse dela: "Adélia é lírica, bíblica, existencial, faz poesia como faz bom tempo: esta é a lei, não dos homens, mas de Deus. Adélia é fogo, fogo de Deus em Divinópolis"

Ensinamento (Poesia Reunida, 1991)
Minha mãe achava estudo
a coisa mais fina do mundo.
Não é.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento.
Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,
ela falou comigo:
“Coitado, até essa hora no serviço pesado”.
Arrumou pão e café , deixou tacho no fogo com água quente.
Não me falou em amor.
Essa palavra de luxo.
   
   Após uma longa carreira, em dezembro de 2013 publica Miserere, uma reunião de 38 poemas que podem ser lidos como fragmentos do diálogo da autora com Deus: “Toda arte é uma expressão do divino, que se comunica primeiro. A arte, mesmo quando pergunta, é uma resposta.”, ela afirma. "Acho que há 30 anos experimentava o mesmo de hoje. Antes olhava a vida da planície e, agora, do planalto. Detalhes novos, lanterna mais potente, polida pela idade, a experiência. Mas o pedido de socorro é o mesmo."

Aí, um desses poemas do planalto:

 

Senha (Miserere, 2013)

Eu sou uma mulher sem nenhum mel
eu não tenho um colírio nem um chá
tento a rosa de seda sobre o muro
minha raiz comendo esterco e chão.
Quero a macia flor desabrochada
irado polvo cego é meu carinho.
Eu quero ser chamada rosa e flor
Eu vou gerar um cacto sem espinho.

  

1 de dezembro de 2013

Paulo Leminski

O talento artístico de Paulo Leminski
Raffaella Bortolotto - A Gazeta da Casa, Ano VI, Dezembro de 2013
 
Em um lindo dia ensolarado do passado mês de setembro, visitamos a Exposição Múltiplo Leminski no Ecomuseu de Itaipu (PR), onde pudemos apreciar textos datilografados, cadernos, colagens, objetos e fotos do artista paranaense.

Mestiço de pai polonês com mãe negra, Paulo Leminski (Curitiba, 24 de agosto de 1944 - 7 de junho de 1989) foi poeta, escritor, tradutor, crítico literário e professor. Com a sua criatividade e maestria, ele encheu de versos e prosas algumas das mais lindas páginas da literatura paranaense e brasileira da segunda metade do século XX. Trabalhou como redator de publicidade e compos canções gravadas por Caetano Veloso, além de traduzir obras de James Joyce Samuel Beckett, Alfred Jarry, entre outros, e
colaborar com o suplemento Folhetim do jornal Folha de São Paulo e com a revista Veja. Paulo Leminski foi também um estudioso da língua e cultura japonesas. Sua obra influenciou os movimentos poéticos dos últimos vinte anos. Em 1955, seu livro Metamorfose foi o ganhador do Prêmio Jabuti de Poesia.

Artista multifacetado e prolífico, simples e complexo ao mesmo tempo, Leminski exercitou diferentes gêneros e estilos literários e empregou múltiplas linguagens para produzir uma estética transgressiva e vanguardista. Ele expressou a rebeldia de uma geração que marcou profundamente a cultura brasileira e as aspirações do povo pela liberdade, a democracia e a justíça social, tema de grande atualidade no país.
 
E sem nunca ter usado um computador, segundo as palavaras da sua mulher, ela também poeta, Alice Ruiz.


Paulo Leminski



24 de junho de 2013

Vinícius de Moraes

Vinícius de Moraes, a vida em estado de poesia
Raffaella Bortolotto - A Gazeta da Casa, Ano VI, Junho de 2013
  
Carioca da gema (Rio de Janeiro, 1913-1980), Marcus Vinícius da Cruz e Melo Moraes foi, antes de tudo, um apaixonado. Aliás, Carlos Drummond de Andrade disse dele: "Vinícius é o único poeta brasileiro que ousou viver sob o signo da paixão. Quer dizer, da poesia em estado natural". Vinícius compositor,Vinícius intérprete, Vinícius escritor, jornalista, crítico de cinema, advogado, diplomata. Vinícius poeta. Poeta essencialmente lírico. Também conhecido como "Poetinha”, viveu a vida ao máximo, passou ela viajando e amando.
A sua obra poética é dividida habitualmente em duas fases: uma de sentido místico e lírico, e outra mais sensual e de linguagem mais simples, que ele mostra também nas composições populares. Seu domínio da língua culta foi decisivo para conferir qualidade literária à música popular brasileira (MPB), enriquecida com suas letras.

Em 1933 Vinícius lançou seu primeiro livro de poemas. Nessa época já era amigo dos poetas Manuel Bandeira, Mário de Andrade e Oswald de Andrade. A sua carreira literária começou com  O caminho para a distância (1933) que, como Forma e Exegese (1935) e Ariana, a mulher (1936), revela as preocupações místicas e transcendentais do autor, de estilo poético ainda indefinido.

O quarto livro, Novos poemas (1938), também se inclui nessa primeira fase. Cinco elegias (1943) e Poemas, sonetos e baladas (1946), marcam a transição para uma nova fase, mais voltada para a participação política e social, além da sensualidade. São desse período a Antologia poética (1955), o Livro dos sonetos (1957) e Novos poemas II (1959), que contém o poema "Receita de mulher". Na década de 1960 publicou mais três livros: Procura-se uma rosa, Para viver um grande amor (ambos de 1962) e Para uma menina com uma flor (1966), de crônicas. A arca de Noé (1970) é um livro de poesia para crianças.
 
Vinicius de Moraes é considerado um grande representante do lirismo amoroso dos nossos tempos. Após a primeira fase, assumiu inteiramente o papel de poeta do amor e do mundo em que vivemos.
 
E assim ele falava sobre o amor:

 
Chega de Saudade

Vai, minha tristeza, e diz a ela
Que sem ela não pode ser
Diz-lhe, numa prece, que ela regresse
Porque eu não posso mais sofrer

Chega de saudade, a realidade é que sem ela
Não há paz, não há beleza
É só tristeza e a melancolia
Que não sai de mim, não sai de mim, não sai

Mas, se ela voltar, se ela voltar
Que coisa linda, que coisa louca
Pois há menos peixinhos a nadar no mar
Do que os beijinhos que eu darei na sua boca

Dentro dos meus braços
Os abraços hão de ser milhões de abraços
Apertado assim, colado assim, calado assim
Abraços e beijinhos e carinhos sem ter fim

Que é pra acabar com esse negócio de viver longe de mim
Não quero mais esse negócio de você viver assim

Vamos deixar desse negócio de você viver sem mim
 

22 de março de 2013

Décio Pignatari

A poesia concreta de Décio Pignatari
Raffaella Bortolotto - A Gazeta da Casa, Ano V, Março de 2013
 

Considerado uma das inteligências mais incisivas que o Brasil já teve e uma das vozes mais singulares da literatura brasileira do século XX,  Pignatari foi poeta, ensaísta, romancista, dramaturgo, tradutor e professor.
 
Nascido em Jundiaí, interior paulista, em 1927, filho de imigrantes italianos, Décio publica seus primeiros poemas em 1949 na Revista Brasileira de Poesia. Em 1950 lança seu livro estreia, Carrossel.
 
Forma-se em Direito, e na década dos anos 50 funda, junto com os irmãos Augusto e Haroldo de Campos, a revista Noigandres, considerada a máxima expressão mundial do Concretismo, movimento vanguardista surgido em 1953, inicialmente na música, depois na poesia e, por fim, nas artes plásticas, que defendia a racionalidade e rejeitava o Expressionismo, o acaso, a abstração lírica e aleatória. Nas obras surgidas no movimento, sua intenção era acabar com a distinção entre forma e conteúdo e criar uma nova linguagem.
 
Em 1965 Pignatari publica o livro Teoria da Poesia Concreta. Além da produção crítica e literária, faz pesquisas na área de semiótica. Como teórico da comunicação, ele também contribui com a fundação da Associação Brasileira de Semiótica, sendo professor da matéria.
 
Sua obra poética está reunida em Poesia Pois é Poesia (1977).
 
Décio foi embora na manhã do domingo 2 de dezembro do ano passado aos 85 anos de idade, em São Paulo.
 
 
Décio Pignatari


 
 
 

10 de dezembro de 2012

João Ubaldo Ribeiro


JOÃO UBALDO RIBEIRO: "A PALAVRA É MUITO PODEROSA"
Raffaella Bortolotto - A Gazeta da Casa, Ano V, Dezembro de 2012


Na tarde de 26 de outubro, o auditório da Casa do Brasil em Madri está lotado, um público expectante aguarda a chegada iminente do famoso escritor baiano. E é aí, entre o murmúrio da sala, que ele aparece, de sorriso amplo no rosto e passo seguro. Usa uma simples camisa xadrez cinza, a mesma cor do seu bigode experiente, e óculos espessos. Acomoda-se à vontade, bem disposto a puxar conversa com a gente.
 
  João Ubaldo Osório Pimentel Ribeiro  nasceu em Itaparica, em 23 de janeiro de 1941. Escritor, jornalista, roteirista e professor, ele é formado em Direito e é membro da Academia Brasileira de Letras. Seus principais romances são Sargento Getúlio, Viva o Povo Brasileiro e O Sorriso do Lagarto, no qual expressa aspectos políticos e sociais da vida nordestina e brasileira. Em 2008 ganhou o Prêmio Camões, a maior premiação para autores de língua portuguesa.
 
Ele nos confessa que nem se reputa um homem de letras, pois não se interessa pela literatura, e acha que cada livro pertence ao leitor, como toda obra de arte a quem a contempla. Gosta é de ser um contador de histórias e se considera um narrador da tradição de cordel e outros hábitos orais do Nordeste. Conta-nos que conhece é Itaparica, portanto  pode descrever a realidade da ilha, e é por isso que a maioria das suas histórias acontecem lá. Também escreve crônica de jornal, aliás, o seu primeiro emprego foi aos 17 anos como jornalista.
 
Aprofundando na conversa, João nos revela que na sua opinião a consciência  humana deforma a realidade: a história é uma, mas pode ser contada de várias formas, a mesma sucessão de acontecimentos pode ser narrada de maneira infinita.
Afirma que há vários tipos de criador literário: o que faz um esquema do romance, o que escreve "andando" e o que, como Jorge Amado e ele, não sabe de onde é que a ideia vem, nem quando ela nasceu. Portanto, para ele a escolha do tema dificilmente é intencional.
 
Evidenciando o seu sutil senso do humor, sustenta que escrever por encomenda é quase uma forma de prostituição da escritura e que nesse caso a grande fonte de inspiração é o cheque.
 
O nosso escritor conclui querendo desmitificar a ideia que o artista em geral seja uma pessoa que fica em casa esperando a sugestão das musas, pois isso, segundo ele, não é verdade.
 
João Ubaldo despede-se do seus entusiasmados fãs afirmando que só pode acreditar na palavra, cuja força acha muito poderosa.
 
 
 

12 de junho de 2012

Caio Fernando Abreu

CAIO FERNANDO ABREU: "A VIDA, APESAR DE BRUTA, É MEIO MÁGICA"
Raffaella Bortolotto - A Gazeta da Casa, Ano V, Junho de 2012


Contista, romancista, dramaturgo, Caio Fernando Loureiro de Abreu (Santiago do Boqueirão, RS, 1948 - Porto Alegre, RS, 1996) inicia os cursos de Letras e Artes Cênicas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mas abandona ambos para trabalhar como jornalista, sendo essa atividade a sua principal fonte de subsistência, com a qual mistura a carreira literária. Em 1968 transfere-se  para São Paulo, após ser selecionado, em concurso nacional, para compor a primeira redação da revista Veja. No ano seguinte, perseguido pela ditadura militar, refugia-se na chácara da escritora Hilda Hilst, em Campinas, São Paulo. A partir daí passa a levar uma vida errante no Brasil e no exterior. Fascinado pela contracultura, viaja pela Europa de mochila nas costas, vive em comunidade, lava pratos em Estocolmo, e considera a possibilidade de viver de artesanato em uma praça de Ipanema. Na década de 1980, escreve para algumas revistas e torna-se editor do semanário Leia Livros. Em 1990, Abreu vai a Londres lançar a tradução inglesa de Os Dragões Não Conhecem o Paraíso (1988). Quatro anos depois, em 1994, ele vai para a França a convite da Maison des Écrivains Étrangers et des Traducteurs de Saint Nazaire, onde escreve a novela Bien Loin de Marienbad. Em setembro do mesmo ano escreve em sua coluna semanal, no jornal O Estado de S. Paulo, uma série de três cartas denominadas Cartas para Além do Muro, onde declara ser portador do vírus HIV.

À medida que sua produção se desenvolve, a identificação não se faz mais com a geração dos anos 60-70, mas é designado porta-voz daqueles que se sentem sufocados em uma sociedade massificadora e alienante, independente de uma filosofia de grupo. Ele é o escritor que fala da falência dos sonhos, mas principalmente da inadequação e do vazio das pessoas no cenário das grandes cidades: "De repente, estou só. Dentro do parque, dentro do bairro, dentro da cidade, dentro do estado, dentro do país, dentro do continente, dentro do hemisfério, do planeta, do sistema solar, da galáxia — dentro do universo, eu estou só. De repente. Com a mesma intensidade estou em mim." Na obra, é nítido o tema da constante busca por algo capaz de dar sentido à vida, pela possibilidade de  descobrir uma forma de realização pessoal que supere o esmagamento dos sonhos.

Assim, Caio lida com temas universais e permanentes, inerentes aos questionamentos mais profundos do ser humano, e transcendentes às circunstâncias sócio-históricas: "Eu sei que dói. É horrível. Eu sei que parece que você não vai aguentar, mas aguenta. Sei que parece que vai explodir, mas não explode. Sei que dá vontade de abrir um zíper nas costas e sair do corpo porque dentro da gente, nesse momento, não é um bom lugar para se estar."


Em cima, Caio Fernando Abreu, jornalista, contista, dramaturgo. E poeta:

"Vem, antes que eu me vá, antes que seja tarde demais. Vem, que eu não tenho ninguém e te quero junto a mim. Vem, que eu te ensinarei a voar."




11 de abril de 2012

Cecília Meireles

O sentir lírico de Cecília Meireles: "Eu canto porque o instante existe."
Raffaella Bortolotto - A Gazeta da Casa, Ano V, Abril de 2012


Cecília Meireles
Poetisa, professora, pedagoga e jornalista, Cecília Benevides de Carvalho Meireles (Rio de Janeiro, 7 de novembro de 1901 - 9 de novembro de 1964) é uma das vozes líricas mais importantes das literaturas em língua portuguesa.

Como ela mesma conta, a sua infância foi marcada pela dor e pela solidão, pois perdeu a mãe com apenas três anos de idade e o pai morreu antes do seu nascimento: "Nasci aqui mesmo no Rio de Janeiro, três meses depois da morte de meu pai, e perdi minha mãe antes dos três anos. [...] Minha infância de menina sozinha deu-me duas coisas que parecem negativas, e foram sempre positivas para mim: silêncio e solidão. Essa foi sempre a área de minha vida."

Cecilia cursou a Escola Normal, formou-se professora, e com apenas 18 anos de idade, no ano de 1919, publicou seu primeiro livro, Espectro (vários poemas de caráter simbolista). Embora fosse o auge do Modernismo, a jovem poetisa foi fortemente influenciada pelo movimento literário simbolista. Em 1923 publicou Nunca Mais… e Poema dos Poemas, e em 1925 Baladas para El-Rei.

Cecília Meireles ecreveu várias obras na área de literatura infantil como, por exemplo, O cavalinho branco, Colar de Carolina, Sonhos de menina, O menino azul, entre outros. Estes poemas infantis são marcados pela musicalidade, uma das principais características da sua poesia. Sua formação como professora e seu interesse pela educação levou-a a fundar, em 1934, a primeira biblioteca infantil do Rio de Janeiro. Em 1939 publicou o livro Viagem. A beleza das poesias trouxe-lhe um grande reconhecimento dos leitores e dos acadêmicos da área de literatura. Com este livro, ganhou o Prêmio de Poesia da Academia Brasileira de Letras.

Na sua poesia ela plasma o amor, a natureza, o infinito, a criação artística, seu sentir da fugacidade da vida: "Em toda a vida, nunca me esforcei por ganhar nem me espantei por perder. A noção ou o sentimento da transitoriedade de tudo é o fundamento mesmo da minha personalidade."

 


Motivo


Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.
Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
não sei, não sei.
Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada.



1 de dezembro de 2011

Cora Coralina

Cora Coralina, a doceira das palavras: "Coração é terra que ninguém vê"
Raffaella Bortolotto - A Gazeta da Casa, Ano IV, Dezembro de 2011


"Muitas vezes basta ser: colo que acolhe, braço que envolve, palavra que conforta, silêncio que respeita, alegria que contagia, lágrima que corre, olhar que acaricia, desejo que sacia, amor que promove." Essa é Cora Coralina.

Considerada a grande poetisa do Estado de Goiás e uma das principais escritoras brasileiras, Ana Lins do Guimarães Peixoto Brêtas (Cidade de Goiás 1889 - Goiânia 1985), apesar de ter cursado apenas até a terceira série do primário, aos 14 anos escreveu seus primeiros contos e poemas. Também chamada de Aninha, virou Cora aos 15 anos, Cora, derivativo de coração, para se diferenciar de tantas Anas da cidade, batizadas todas em homenagem à santa padroeira. Cora Coralina, coração vermelho, gostava de contar.

Tornou-se doceira para sustentar os quatro filhos depois que o marido, o advogado paulista Cantídio Brêtas, morreu, em 1934. Cora considerava seus doces cristalizados de caju, abóbora, figo e laranja, que encantavam os vizinhos e amigos, obras melhores do que os poemas que escrevia em folhas de caderno: "Se a gente cresce com os golpes duros da vida, também podemos crescer com os toques suaves na alma", afirmava.

Aprendeu a datilografar aos 70 anos, e publicou o seu primeiro livro de poesia, Poema dos Becos e Estórias Mais, em junho de 1965, dois meses antes de cumprir os 76 anos. Seguiram Meu Livro de Cordel publicada em 1976, e Vintém de Cobre (1983). Em 1984 recebeu o Grande Prêmio da Crítica/Literatura, concedido pela Associação Paulista de Críticos de Arte, e o Troféu Juca Pato, concedido pela União Brasileira de Escritores. Tragédia na Roça foi seu primeiro conto publicado.

Assim o poeta Carlos Drummond de Andrade manifestava a sua admiração numa carta dirigida a Cora em 1983: "Minha querida amiga Cora Coralina: Seu Vintém de Cobre é, para mim, moeda de ouro, e de um ouro que não sofre as oscilações do mercado. É poesia das mais diretas e comunicativas que já tenho lido e amado. Que riqueza de experiência humana, que sensibilidade especial e que lirismo identificado com as fontes da vida! Aninha hoje não nos pertence. É patrimônio de nós todos, que nascemos no Brasil e amamos a poesia [...]."

Com certeza, nessa terra que ninguém vê, a Aninha pertence um pouco a todo o mundo.


Assim eu vejo a vida

A vida tem duas faces:
Positiva e negativa
O passado foi duro
mas deixou o seu legado
Saber viver é a grande sabedoria
Que eu possa dignificar
Minha condição de mulher,
Aceitar suas limitações
E me fazer pedra de segurança
dos valores que vão desmoronando.
Nasci em tempos rudes
Aceitei contradições
lutas e pedras
como lições de vida
e delas me sirvo.
Aprendi a viver.

CORA CORALINA