2 de julho de 2011

Milton Hatoum

MILTON HATOUM: "A literatura é a arte da paciência."
O escritor amazonense entre memória, floresta e Eldorado
Raffaella Bortolotto - A Gazeta da Casa, Ano II, Fevereiro de 2009


Conhecemo-lo, Milton Hatoum, o escritor amazonense reconhecido pela crítica do seu país e internacional como um dos mais talentosos autores brasileiros da atualidade.

Nacido em Manaus em 1952 de pais sírio-libaneses e brasileiros -criado, por tanto, entre duas religioes e duas línguas-, arquiteto e mestre em Literatura pela Universidade Paris III (Sorbonne Nouvelle), viajou para Europa e Estados Unidos, e ensinou Literatura na Universidade do Amazonas e na Universidade de Califórnia, em Berkeley. Escreveu quatro cativantes livros de ficção, três dos quais  -Relato de um Certo Oriente (1989), Dois Irmãos (2000), Cinzas do Norte (2005)- foram vencedores do prestigiado Prêmio Jibuti, e o último, Ófãos do Eldorado, sucesso editorial de 2008.

Temos o prazer e privilégio de encontrá-lo aqui, na Espanha, numa tarde morna do princípio do outono madrileno, recebido pela Fundación Cultural Hispano-Brasileña como convidado do Proyecto Escritor Visitante 2008. “Cada livro te ensina a escrevê-lo”, nos revela. Ser humano de extraorinária consistência, mostra-se logo próximo, disponível à conversa, resultando-nos quase familiar. E é que mais que conhecê-lo, parece-nos reconhecê-lo: adivinhamo-lo quer nos traços somáticos de alguns dos personagens habilmente criados pela sua pluma, quer, sobretudo, na espessura humana destes. De fato, se bem é certo que o escritor sempre fica (mais ou menos oculto) entre as linhas das suas criações, poucas vezes essa presença nos pareceu tão manifesta como no caso de Hatoum. Percebemo-lo nas características étnicas da família de emigrantes libaneses protagonista de Dois Irmãos, mas também na nobreza da alma de Mundo, personagem central de Cinzas do Norte, e na verdade interior de Arminto Cordovil, o narrador do seu último trabalho literário, Órfãos do Eldorado.


Reunidos na Sala Borges da Casa de América, numa cálida atmosfera informal, ele nos fala acerca dos seus romances e do modo de sentir a vida, refletido na sua forma de escrever. O seu projeto literário, nos conta, é ligar a história pessoal à familiar, porque “num certo momento da nossa vida, a nossa história -com todas as limitações e delimitações que essa história suscite- é também a história da nossa família e de nosso país“.

E o âmbito onde as histórias se originam é a memória, pois “a literatura é movida pela memória”. Assim é para Arminto Cordovil, no início da narração: “Conto o que a memória alcança, com paciência”. Segundo Hatoum, a memória não é muito diferente da imaginação: ela é uma construção, faz parte do processo da imaginação. Por isso é importante para o romancista escrever sobre o passado, porque “o tempo recente vai falar de fatos e os fatos não interessam para a literatura”. Assim, na sua obra são as vivências do narrador que estabelecem a narração, o tempo narrativo é um tempo fragmentário, um vaivém no espaço e no tempo. A narrativa se apresenta como fluxo de conciência (técnica utilizada já por Flaubert, Proust, Joyce, ou Virginia Woolf) que intercepta presente e passado, quebrando os limites espaço-temporais: não resulta tão claro distinguir entre as lembranças dos personagens e a situação presentemente narrada.

Memória como “o outro nome da imaginação”, portanto. A rica imaginação do escritor manauara, alimentada por um dos elementos que mais marcaram a sua vida: a paisagem da infância. Então entra na cena a Amazônia, personagem não menos intenso e vivo que os personagens humanos de Hatoum, com sua particularidades geográficas, antropológicas e religiosas. Na grande representação estão as cores da floresta, sua fauna, sua flora, os sabores e os pratos típicos, que ficam às vezes adaptados às tradições da gastronomia árabe. E os cheiros: quem conheçeu os cheiros dessas latitudes, não pode deixar de revivê-los nas páginas da obra de Hatoum.

Pano de fundo em toda a criação literária do escritor, a Amazônia é mais que nunca protagonista em Órfãos do Eldorado, uma história de fundo mítico -no formato literário de novela- narrada entre o sonho e a vigília, onde se fundem o mito do Eldorado com a Cidade Encantada, no cenário de Manaus e da região amazônica. Desenvolvida no início do século passado, aqui a narrativa funde duas instâncias: a real, onde Arminto luta contra a figura do pai (tema presente, o do conflito familiar, também em Dois Irmãos e Cinzas do Norte) e vive a relação ambígua com Florita, a mulher que o criou; e a outra, quase sobrenatural, onde ele se perde na obsessão por uma órfã misteriosa. Na novela apreciamos, mais uma vez, essa fluidez natural própria do escritor amazonense, com a sua peculiar capacidade de levar os elementos de um drama humano individual a sentimento universal. Uma visão existencial substancialmente pessimista, a de Hatoum, pois na sua obra não há “solução” e nenhum personagem se salva no final: só os narradores sobrevivem, porque “se não sobrevivessem, não haveria narrativa”.

Mas, apesar dos conflitos de fundo que caracterizam as relações humanas, das incompreensões e dos desencontros, para além do cinza existencial que tinge as vidas dos personagens de Milton Hatoum, queremos descobrir entre as linhas das suas páginas literárias mais delicadas a beleza do momento autêntico: “Ela se comoveu, Lavo. Encontrei uma pessoa que se emociona", diz Mundo se referindo Ramira.

Assim como nós nos emocionamos, no final deste bonito encontro enriquecedor, ao recebermos o afetuoso abraço com que, chegado já o anoitecer, nosso escritor se despede de Madri.

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